Este é o meu testamento
que eu fiz neste momento
em que digo adeus à vida.
Sentia a garra da Morte
a apertar-me o gasganete,
terrível, qual diabrete.
Mandei chamar o vigário,
o médico, o boticário,
uma benzedeira d´olhados;
no momento derradeiro
apareceu o cangalheiro
e quatro gatos-pingados.
Já traziam o caixão,
fiquei cheinha de horror
e soltei tremendo berro.
Nisto, oiço o Sacristão:
“Pregunta o Senhor Prior
a que horas é o enterro”.
Toda a gente em alta grita
quer ser primeiro atendida;
vem de lá o cangalheiro
com um metro de carpinteiro,
quer tirar-me a medida.
“Espere lá – diz o Doutor –
não queira ser metediço;
deixe a velhota auscultar
e depois de eu receitar
faça então o seu serviço.”
O boticário, exaltado,
´té arrepela os cabelos.
E a benzedeira d´olhados,
p´ra afugentar os maus fados,
vai espetando novelos...
Já farta de confusões,
pus essa gentinha a andar
e pensei com os meus botões:
p´ràs minhas disposições,
vou o notário chamar.
E fiz este testamento
de bens móveis e imóveis
e até de semoventes.
Se não agradar a todos,
Sempre é certo que p´los modos,
Vocês são muito exigentes.
Deixo à antiga Direcção
coisas de grande estadão:
ao Amílcar, um capacho,
para a falta de penacho.
E agora sem piada,
esta deixa que é sentida:
que torne a amar a Vida
e recobre a cor rosada.
E não se vá de longada,
é também desejo meu,
para sítio ignorado;
antes volte ao Ateneu,
onde tanto é estimado.
Ao Pacheco relojoeiro,
deixo um disco bem gravado
com um discurso inflamado
p´ra convencer o parceiro.
Poupará muito dinheiro
aproveitando o seu tempo,
porque os dias estão maus.
E no fim de toda a prosa
diz o disco em voz chorosa:
“o concerto é 20 paus.”
Também ao nosso Guilherme
da Circuncisão chamado,
eu vou fazer um legado
que é mesmo de pasmar:
aqui lhe deixo ficar
um triste encargo, afinal,
é ir ao meu funeral
com cara de sentimento.
Como não sou egoísta,
E como ele é um artista,
se for só, nada lamento,
´té dispenso a multidão,
basta-me o seu rabecão
para o acompanhamento.
Ó Marques, tu marcas sempre,
tu marcas em toda a parte,
destacas de toda a gente,
tens elegância e tens arte.
O que é que eu hei-de deixar-te
que te alegre o rir já franco?
Como tens bom coração,
olha, aí fica um tostão
para as falhas lá do Banco.
Machadinho, querido filho,
já não chego a ser avó,
já não canto o sol-e-dó,
já não trauteio o estribilho.
E na hora de morrer,
certo voto vou fazer,
que vai espantar os mirones:
como tens linhaça e lata,
deixarás os Telefones,
passarás a diplomata.
E deixo ao Henrique Dias,
uma pedra de amolar,
onde ele sem arrelias,
possa a tesoura afiar.
E também lhe quero legar
um tinteiro e três canetas
que ele poderá usar
no jornal que vai fundar,
“O Almocreve das Petas”.
Não esqueço a Orquestra Pontes,
tão cheia de cor e vida.
Eu, uma velha carcomida,
quando a ouvia tocar,
ainda sentia ganas
de ir pular e dançar.
E pelos votos que faço,
verás tu, amigo Pontes,
que eu não tenho mau génio;
que toques por vales e montes,
contratado pelo Eugénio.
E já alta madrugada,
depois de muito tocares,
paguem à rapaziada,
além da massa fixada,
umas horas suplementares.
E deixo ao José Faria,
Uma garganta de prata,
pois, como tem muita lata,
´inda ópera cantar podia.
E indo abrir loja nova,
para endireitar a vida
vou-lhe dar uma receita:
nada venda por medida,
mas sim tudo obra já feita.
E aos sócios em geral,
eu quero dar um conselho:
passem ali p´lo bufete
que há lá um vinho velho
que é de tirar o barrete.
Ao Nogueira vou dizer
aqui, sem que ninguém ouça:
casa depressa com a moça,
não esperes envelhecer.
Se ela. já farta de esperar,
te vem a dar com a janela,
não tornas a encontrar
uma pequena como ela.
E falando das senhoras,
só elogios posso ter
à sua elegância e graça...
o perfume que perpassa...
enfim, todos estão a ver.
Deixo-lhes um grande valor
que poderão pôr à prova:
isto é, um filtro d´amor
do mágico Barzabum.
Mostrem do que são capazes,
façam ralar os rapazes;
quando eu era também nova,
não me escapava nenhum.
E tu, ó Pereira da Silva,
cada vez estás mais menino,
e como nasceste em Março,
´inda hás-de ser Marcelino.
Visto a vida estar bicuda
vais apanhar a taluda;
deixo-te uma benzedura
para curares a mordedura
que te deram certos cujos,
e assim poderes arejar,
espanejar e lavar,
processos velhos e sujos.
À Orquestra dos Fininhos,
alguns sambas deixaria
se soubesse que ainda dançam
o Macedo e o Faria.
Mas como um agora é tropa
e o outro anda arredio,
levo os sambas para a cova
e não solto mais um pio.
E ao Agostinho Albino,
eu cá não deixo nem bóia,
pois já tem muito de seu,
que desde a guerra de Tróia,
ainda não apareceu
neste mundo uma outra Helena
que chegue à sua pequena.
Ao Arnaldo então eu deixo
um bom vaporizador
e uns maus cheiros muito finos
que é para ele seringar
determinados meninos
que se juntam lá na loja
a fazer sala de estar.
Fialho, vou-te deixar
em honra ao teu bigodinho,
uma incumbência taluda:
escreve para o “Pensa e Estuda”,
que aquilo está muito fraquinho.
Ao animador Candeias
vou contemplar de tal modo
que até se vai derreter...
deixo este espólio todo:
uns sapatos e umas meias
que eram do Fred Astaire.
Ao Soares, sempre animado,
bom amigo que se tem,
deixo trinta corridinhos
para ele dançar aos pulinhos,
ele é que sabe com quem.
Ao Arôcha quero deixar
uma coisa que lhe preste
nunca será codilhado
sempre que tenha arranjado
quatro trunfos de Ás e Best.
Esgotados os meus haveres,
ao findar o meu sofrer,
no momento derradeiro,
´inda tenho um gesto terno:
entrego a alma ao Inferno,
deixo a carcaça ao coveiro.
VELHA GAITEIRA
(R.C.NASCIMENTO)
(Lido pelo Autor no ATENEU SETUBALENSE, Baile de Mi-Carême, em 22 de Março 1941)
(Aqui em baixo, o original, dactilografado em 1941.)
12 comentários:
FAÇO EU O 1º COMENTÁRIO.
TODOS OS AMIGOS E COLEGAS DE MEU PAI AQUI REFERIDOS, INFELIZMENTE, JÁ FALECERAM, E TODOS MAIS NOVOS QUE MEU PAI. ERAM TODOS SETUBALENSES, TODOS HAVIAM FREQUENTADO O LICEU BOCAGE E ALGUNS ERAM COLEGAS DE ORFEÃO DO MEU PAI.
O DERRADEIRO, JOSÉ ARÔCHA, AINDA VIVO EM 2007, FALECEU EM 2008 COM 92 ANOS.
ALÉM DE VER TODOS OS AMIGOS DO LICEU JÁ FALECIDOS, E TODOS OS SETUBALENSES QUE COM ELE CONVIVERAM EM SETÚBAL DESDE QUE NASCEU ATÉ AOS ANOS 40, MEU PAI AINDA PERDEU DOIS AMIGOS RECENTEMENTE, ESTES LISBOETAS E BASTANTE MAIS NOVOS QUE ELE, UM VIOLINISTA E UM ANTIGO COLEGA BANCÁRIO.
AQUI EM CASA, ALÉM DA OBRA DE MEU PAI, EXISTEM OBRAS DE OUTROS SETUBALENSES, QUE TAMBÉM TENTAREI IR RECUPERANDO.
BEIJINHOS PARA TODOS!
Amiga "jardenêra" entrega-te aos trabalhos e vai dando conhecimento deles. Fartei-me de rir! Este Poeta, Rui Nascimento, merece a sua obra publicada.
Gosto muito da nova fotografia, donzela.
As melhoras, amiga!
Beijitos
Mas que grande testamento.
Deve ser muito tristew para o seu pai ver desaparecer todos os amigos.
Um abraço e uma boa semana
Lindo, embora nostálgico...
A CASA FICOU MAIS BONITA COM VOSSAS RIMAS, MAIS ALEGRE E COLORIDA E ENVAIDECE-SE DE TER TAMANHA OPERÁRIA ENTRE OS SEUS HABITANTES.
A CASA AGRADECE, SENHORA!
GIRÍSSIMO, BOCAGIANO!
DO MAIS FINO RECORTE HUMORÍSTICO!
UM ABRAÇO GRANDE PARA OS DOIS, FILHA E PAI.
Jorge P.Guedes
BOA TARDE, LEONOR!
VENHO PEDIR-LHE O FAVOR DE FAZER CHEGAR À NOSSA AMIGA T.D. UM MAIL QUE LHE ENVIEI A SI POR NÃO TER O DELA.
PODERÁ SER?
UM ABRAÇO E ESPERO QUE ESTEJA BEM DE SAÚDE.
AMIGA,
LEMBRAVA-ME VAGAMENTE DO POEMA QUE JÁ LERA NO QUINTAL.
TENS TAMBÉM UM RELÓGIO TODO LINDÃO DO NOSSO COMUM AMIGO.
BJS
TD
Amiga, já tinha deixado aqui um comentário, será que não cliquei no publicar?
Desculpa, Nôzita. Soube através dos teus comentários no Joca que estiveste doente e também através do teu email. Escrevo-te em breve.
Quanto à brincadeira do pai, está como sempre, genial. Tens de continuar a compilar a sua obra. Vastíssima e muito boa.
Mil beijitosssssssss
Bem-hajas!
UM GRANDE ABRAÇO E SAÚDE.
ASPÁSIA,
PARABÉNS. UM BEIJINHO AO SEU PAI.
TENHA UM DIA MUITO FELIZ! SEGUIDO DE MUITOS OUTROS NÃO MENOS FANTÁSTICOS.
DEIXO UM ABRAÇO, O SORRISO DE SEMPRE E SAUDADES!
MARIAM
Para si neste dia especial
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Com um abraço
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