terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Testamento da Velha

Amigas e Amigos, hoje, dia de Carnaval, aproveito para republicar esta obra de meu Pai, que já tinha publicado no "Quintal" em 2007. Peço desculpa de não vos visitar há uns tempos, mas não ando muito bem de saúde e quase todo o tempo disponível tem sido para tratar obras do Pai.


Este é o meu testamento
que eu fiz neste momento
em que digo adeus à vida.
Sentia a garra da Morte
a apertar-me o gasganete,
terrível, qual diabrete.

Mandei chamar o vigário,
o médico, o boticário,
uma benzedeira d´olhados;
no momento derradeiro
apareceu o cangalheiro
e quatro gatos-pingados.

Já traziam o caixão,
fiquei cheinha de horror
e soltei tremendo berro.
Nisto, oiço o Sacristão:
“Pregunta o Senhor Prior
a que horas é o enterro”.

Toda a gente em alta grita
quer ser primeiro atendida;
vem de lá o cangalheiro
com um metro de carpinteiro,
quer tirar-me a medida.
“Espere lá – diz o Doutor –
não queira ser metediço;
deixe a velhota auscultar
e depois de eu receitar
faça então o seu serviço.”

O boticário, exaltado,
´té arrepela os cabelos.
E a benzedeira d´olhados,
p´ra afugentar os maus fados,
vai espetando novelos...

Já farta de confusões,
pus essa gentinha a andar
e pensei com os meus botões:
p´ràs minhas disposições,
vou o notário chamar.

E fiz este testamento
de bens móveis e imóveis
e até de semoventes.
Se não agradar a todos,
Sempre é certo que p´los modos,
Vocês são muito exigentes.


Deixo à antiga Direcção
coisas de grande estadão:
ao Amílcar, um capacho,
para a falta de penacho.
E agora sem piada,
esta deixa que é sentida:
que torne a amar a Vida
e recobre a cor rosada.
E não se vá de longada,
é também desejo meu,
para sítio ignorado;
antes volte ao Ateneu,
onde tanto é estimado.

Ao Pacheco relojoeiro,
deixo um disco bem gravado
com um discurso inflamado
p´ra convencer o parceiro.
Poupará muito dinheiro
aproveitando o seu tempo,
porque os dias estão maus.
E no fim de toda a prosa
diz o disco em voz chorosa:
“o concerto é 20 paus.”

Também ao nosso Guilherme
da Circuncisão chamado,
eu vou fazer um legado
que é mesmo de pasmar:
aqui lhe deixo ficar
um triste encargo, afinal,
é ir ao meu funeral
com cara de sentimento.
Como não sou egoísta,
E como ele é um artista,
se for só, nada lamento,
´té dispenso a multidão,
basta-me o seu rabecão
para o acompanhamento.

Ó Marques, tu marcas sempre,
tu marcas em toda a parte,
destacas de toda a gente,
tens elegância e tens arte.
O que é que eu hei-de deixar-te
que te alegre o rir já franco?
Como tens bom coração,
olha, aí fica um tostão
para as falhas lá do Banco.

Machadinho, querido filho,
já não chego a ser avó,
já não canto o sol-e-dó,
já não trauteio o estribilho.
E na hora de morrer,
certo voto vou fazer,
que vai espantar os mirones:
como tens linhaça e lata,
deixarás os Telefones,
passarás a diplomata.

E deixo ao Henrique Dias,
uma pedra de amolar,
onde ele sem arrelias,
possa a tesoura afiar.
E também lhe quero legar
um tinteiro e três canetas
que ele poderá usar
no jornal que vai fundar,
“O Almocreve das Petas”.

Não esqueço a Orquestra Pontes,
tão cheia de cor e vida.
Eu, uma velha carcomida,
quando a ouvia tocar,
ainda sentia ganas
de ir pular e dançar.
E pelos votos que faço,
verás tu, amigo Pontes,
que eu não tenho mau génio;
que toques por vales e montes,
contratado pelo Eugénio.
E já alta madrugada,
depois de muito tocares,
paguem à rapaziada,
além da massa fixada,
umas horas suplementares.

E deixo ao José Faria,
Uma garganta de prata,
pois, como tem muita lata,
´inda ópera cantar podia.
E indo abrir loja nova,
para endireitar a vida
vou-lhe dar uma receita:
nada venda por medida,
mas sim tudo obra já feita.
E aos sócios em geral,
eu quero dar um conselho:
passem ali p´lo bufete
que há lá um vinho velho
que é de tirar o barrete.

Ao Nogueira vou dizer
aqui, sem que ninguém ouça:
casa depressa com a moça,
não esperes envelhecer.
Se ela. já farta de esperar,
te vem a dar com a janela,
não tornas a encontrar
uma pequena como ela.

E falando das senhoras,
só elogios posso ter
à sua elegância e graça...
o perfume que perpassa...
enfim, todos estão a ver.
Deixo-lhes um grande valor
que poderão pôr à prova:
isto é, um filtro d´amor
do mágico Barzabum.
Mostrem do que são capazes,
façam ralar os rapazes;
quando eu era também nova,
não me escapava nenhum.

E tu, ó Pereira da Silva,
cada vez estás mais menino,
e como nasceste em Março,
´inda hás-de ser Marcelino.
Visto a vida estar bicuda
vais apanhar a taluda;
deixo-te uma benzedura
para curares a mordedura
que te deram certos cujos,
e assim poderes arejar,
espanejar e lavar,
processos velhos e sujos.
À Orquestra dos Fininhos,
alguns sambas deixaria
se soubesse que ainda dançam
o Macedo e o Faria.
Mas como um agora é tropa
e o outro anda arredio,
levo os sambas para a cova
e não solto mais um pio.

E ao Agostinho Albino,
eu cá não deixo nem bóia,
pois já tem muito de seu,
que desde a guerra de Tróia,
ainda não apareceu
neste mundo uma outra Helena
que chegue à sua pequena.

Ao Arnaldo então eu deixo
um bom vaporizador
e uns maus cheiros muito finos
que é para ele seringar
determinados meninos
que se juntam lá na loja
a fazer sala de estar.

Fialho, vou-te deixar
em honra ao teu bigodinho,
uma incumbência taluda:
escreve para o “Pensa e Estuda”,
que aquilo está muito fraquinho.

Ao animador Candeias
vou contemplar de tal modo
que até se vai derreter...
deixo este espólio todo:
uns sapatos e umas meias
que eram do Fred Astaire.

Ao Soares, sempre animado,
bom amigo que se tem,
deixo trinta corridinhos
para ele dançar aos pulinhos,
ele é que sabe com quem.

Ao Arôcha quero deixar
uma coisa que lhe preste
nunca será codilhado
sempre que tenha arranjado
quatro trunfos de Ás e Best.

Esgotados os meus haveres,
ao findar o meu sofrer,
no momento derradeiro,
´inda tenho um gesto terno:
entrego a alma ao Inferno,
deixo a carcaça ao coveiro.

VELHA GAITEIRA

(R.C.NASCIMENTO)

(Lido pelo Autor no ATENEU SETUBALENSE, Baile de Mi-Carême, em 22 de Março 1941)


(Aqui em baixo, o original, dactilografado em 1941.)



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O Amor há 70 Anos
(Carta de Amor por Procuração)

O Ungüento de Basalicão


Trago-vos hoje uma curiosidade alusiva à época CarnaValentina (eheheh...) que atravessamos!
Uma Carta de Amor, ou melhor, o seu rascunho, que descobri há pouco tempo, escrita por meu Pai há 70 anos, em Setúbal, a pedido de um amigo boticário, a quem faltava o engenho e arte para se declarar a uma bela menina, Maria Cecília de seu nome, que era soprano no Orfeão Cetóbriga, onde meu Pai também cantava.


Aqui podem ver as cinco folhas do "rascunho" original que ficou em poder do meu Pai até hoje. Naturalmente, terá sido "passado a limpo", antes de ser entregue à diva idolatrada pelo humilde boticário... Desde já aviso que a carta se encontra transcrita mais adiante, pois já a nossa amiga Elvira, que o não sabia, se deu à trabalheira arqueológica de ler as páginas do rascunho... um azar de 6ª feira, 13, como ela já comentou.







Parece que apesar das inspiradas linhas do procurador, a carta não surtiu o efeito desejado... e ao infeliz boticário não restou mais que aplicar "ungüento de basalicão" nas feridas de amor!...

E uns meses mais tarde, meu Pai revelou à amiga e colega do Orfeão quem tinha sido o verdadeiro autor da inflamada missiva. Parece que todos se divertiram muito com o caso, incluindo o preterido boticário Júlio!

(Segue-se a transcrição, respeitando a ortografia da época.)

******

Setúbal, 16 de Fevereiro de 1939

Excelentíssima Senhora

Eu quizera fazer calar no peito meu sofredor o sentimento insensato, porventura, que nêle nasceu e se enraizou de tal arte que me obriga a dar êste passo, a vir junto de vós, como o peregrino vai junto da capela longínqua, lançar-se aos pés da imagem da sua devoção, a implorar, a confessar.

A dizer-lhe da chama extranha e devoradora que reacendeu no meu ser e que é para mim, simultaniamente, a luz que me prende à vida e o fôgo que me há-de devorar até à morte.

Não supunha, minha senhora, que no contacto diário dos ungüentos e águas bóricas se não possam inflamar as paixões mais avassaladoras e imperiosas.

Um boticário humilde pode levantar seus olhos, quando nêles brilhe o fôgo sincero do amor, para a dama que lhe avassala o pensamento, como o crente mesquinho pode e deve! elevar para Deus seus olhos a transbordar da chama da Fé; como o rústico pastor olhou o Menino, filho de Maria Santíssima e nascido no palheiro redentor lá nas terras benditas da Judeia.

Quando dancei consigo, quando a ouvi, fiquei prêso e a desejar prender-me mais ainda.

O seu encanto perturbante, fascinador, qualquer coisa de inexplicável e dominadora, rendeu-me.

Olhar que tentaria o próprio José do Egipto, se êle tivera a ventura de a conhecer, como lhe resistiria eu, alma isolada do mundo, alma danada a refrear o anceio ardente do seu sonho entre hóstias de vários tamanhos e frascos de diversas embocaduras e misteriosos rótulos?!

Minha senhora, o sentimento que em mim despertou não podia, não devia ficar sepultado em meu peito, amortalhado no negro dominó que me disfarçava.

Nessa mesma noite ficou sabendo quem sou; hoje atrevo-me a confessar-lhe a minha esperança.

Se alguma estima pode ter por quem a adora e só a si vê, se a minha sincera confissão algum eco puder ter na sua alma, leve uma flor ao peito ao baile do Grémio.

Dessa Mão depende agora a felicidade que sonhei.

Esta carta escrita na quadra de folguêdos que atravessamos, poderia parecer brincadeira se a expontânia sinceridade das minhas palavras não fosse o penhor mais fiel da verdade de quanto lhe digo.

E termino, que já me estou alongando e o tempo urge. Agora mesmo entrou uma freguesa a comprar 5 tostões de basalicão. Pudera êsse unto balsâmico diminuir a amargura que trago no coração como há-de curar o furúnculo que ela tem na ponta do nariz!

Mas é impossível! Para o mal da minha alma o único basalicão é o seu amor!

Seu admirador sincero e apaixonado,

Júlio P.


NOTA: O unguento de basalicão (nome popular da planta basílico), usava-se no tratamento de furúnculos.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Memórias de Margarida, minha Irmã

Minha irmã Margarida aos 16 anos


Quadro (espelho) com o seu signo, Aquário


Amigas e Amigos

Passa hoje mais um aniversário natalício de minha irmã Margarida, falecida em 1972, que, se ainda estivesse entre nós, completaria 62 anos. Muito provavelmente teria o seu próprio blog e aqui andaria a fazer-nos companhia, partilhando alguns dos seus poemas, desenhos e ideias, como já fazia enquanto viveu, com os seus amigos de juventude. Só resto eu para transmitir algo das suas memórias, mas como ando prioritariamente a tratar de obras do meu Pai, como se compreende, dado a sua avançada idade, tem ficado para trás a obra da Margarida.

Minha irmã tinha muitos "hobbies", nomeadamente a leitura, e de entre esta preferia os autores de língua francesa e romance policial. Tendo enveredado pelo Direito e tencionando exercer a advocacia, ela gostava de seguir, nos meandros dos livros policiais, a perseguição, a descoberta e a punição dos malfeitores e criminosos.

Outras paixões eram escrever poesia, desenhar, pintar e a construção de réplicas de navios, que adquiria em caixas com centenas de peças em plástico que pacientemente pintava com enamel, colava e montava até o pequeno navio estar concluído até ao mais ínfimo promenor, reproduzindo o original. Dos três que havia construído à data do seu falecimento, ainda tenho um, algo danificado, e que um dia que tenha mais tempo tenciono reparar.

Pelos anos do Liceu Filipa de Lencastre, que frequentou sempre com bom aproveitamento e onde mais tarde eu também seria aluna, entre outras brincadeiras, escreveu alguns poemas humorísticos alusivos à vida liceal entre professoras e colegas, entre os quais escolhi este para vos mostrar. Claro que foi inspirado no famoso "Colchão dentro do Toucado" de Nicolau Tolentino.




Soneto

Lápis na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé no estrado, a senhora ordena
Que o furtado ponteiro, (a sua avena),
A aluna o ponha ali ou a empregada.

A aluna, moça esbelta e aperaltada,
lhe diz coa doce voz que o ar serena:
Sumiu-se-lhe o ponteiro? É forte pena;
Ai, e a senhora tão apoquentada...”

— "Vous repondez assim? Vous zombez disto?
Tu pensas que por seres boa aluna
Não te ponho na rua?" E, dizendo isto,

Levanta-se, avançando qual foguete.
Eis senão quando (caso nunca visto)
Cai-lhe o ponteiro do bolso do colete!



Margarida Nascimento

(anos 60)


Como se vê, também não lhe faltava humor, apesar de a maioria dos poemas que deixou ser em género mais sério.

Também deixo aqui três dos seus desenhos, feitos talvez ainda durante os anos do liceu. São os poucos que já digitalizei, mas ainda falta muito, nomeadamente algumas aguarelas em género japonês, que ela muito apreciava.



Armas de Camelot

A Equipa

O Mordomo