Maria Margarida Fernandes de Carvalho Nascimento
(7 de Fevereiro 1947 - 14 de Dezembro 1972)
- Retrato a Óleo (póstumo)
Jogando à bola com o Pai - 1956 Irmã, se fosses viva farias hoje 61 anos.
Infelizmente partiste muito cedo, tão cedo que ainda quase não nos conhecíamos… eu entrava em pleno na adolescência e tu eras 10 anos mais velha, e embora vivesses aqui no prédio com a tua Avó, pouco convivíamos a não ser ao fim de semana ao almoço, ou quando eu passava lá por baixo pelo quarto independente da D.ª Emília, mas poucas vezes estavas. A Faculdade de Direito tomava-te quase todo o tempo e a nossa diferença de idades era bastante significativa no nosso escalão etário.
Além disso, tinhas as tuas amigas, a Jusse, já desde o Liceu, a cuja quinta ias andar a cavalo e que se formou em Direito no mesmo ano que tu – 1969 - e a brasileira Lúcia, que tinha vindo para Portugal e tinha dois anos menos que tu, conheceram-se no voleibol… a Lúcia, tão acarinhada por ti e pela Avó Maria, quando veio estudar Medicina para Portugal. A Lúcia, que nem sempre tinha muito dinheiro e almoçava muitas vezes contigo e a Avó. A Lúcia, que te convidou para ires ao Brasil, à casa dela no Rio Grande do Sul, no Natal de 1972. A Lúcia… que colocou o que restou de ti depois do acidente no jazigo da família dela, na cidade de Bento Gonçalves. A Lúcia… seria preferível não teres conhecido a Lúcia de Souza???
Foi longa aquela noite de 14 de Dezembro de 1972.
O telefone tocou pelas 10 da noite. Tu tinhas partido com a Jusse e a Lúcia para o Brasil no dia 7 ou 8… já tínhamos recebido dois ou três postais teus… e depois dessa noite ainda recebemos mais um ou dois… o Correio era lento do Brasil para cá… nunca aqui em casa se tinham recebido postais de uma morta, até então. Claro que os tenho todos guardados, e recentemente encontrei outros mais.
O nosso Pai atendeu. Pela cara e de onde vinha o telefonema… eu percebi logo que algo grave, muito grave se tinha passado.
“Um acidente. Um camião em sentido contrário... A sua filha ia a conduzir. Com as amigas Jusse e Lúcia e o pai iam todos no carro deste último… O camião perdeu a mão, ou pareceu vir contra o carro… A sua filha tentou desviar-se. O carro despistou-se: A sua filha foi projectada pelo vidro da frente. Foram todos levados ao hospital. A sua filha faleceu. As amigas e o pai da Lúcia, feridos, mas vivos… Quer trasladar a sua filha para Portugal?”
Eu e a minha Mãe estávamos já em prantos. O nosso Pai, lívido, mas nem uma lágrima. “Para que quero eu aqui uma filha morta? Fica aí convosco que fica bem… Antes quero dar esses 400 contos à minha filha viva – eu – do que a uma filha morta que já de mais nada precisa.”
Desligou o telefone. Eu estava num choro que só dois dias depois é que foi passando.

Maria dos Santos, a Avó Maria, perdeu o marido, a filha mais velha Felismina de 20 anos, a filha Albertina de 25 e o filho Jaime (pai de Jaime Fernandes, locutor de rádio), todos levados pela tuberculose. E finalmente sua neta Margarida de 25 anos, minha meia-irmã, num acidente de viação no Brasil.
E agora? Como dizer a uma Avó-Mãe, que já perdera o marido, o filho e as duas filhas, todos levados pela tuberculose… e que só via a neta desde que ficou órfã com um ano de idade… que a neta de 25 anos acaba de morrer no Brasil?
No Casamento dos meus Pais (de laçarote) - Agosto 1956
Lá fomos em féretro a casa da Dona Emília. Os rapazes estavam também, o Adrião, o
Zé e o Paulo. (Ah, a propósito, irmã. O Zé já se foi, fez um ano em Dezembro, com 50 anos… Foram muitos anos de droga… o irmão dele, o Adrião, andou ali a tirar os velhos móveis e candeeiros do 1º andar. Eu e o Pai vínhamos a entrar e lá lhe demos os sentimentos. O Adrião, mais novo que tu uns 6 anos, tem quatro filhos e já é avô, calcula… O Paulo teve uma doença grave, mas está controlado. A minha Mãe também já se foi em Abril de 2002. A Mãe deles, D.ª Emília, que também foi tua segunda mãe, foi logo a seguir, em Maio desse ano. Felizmente não viveu para assistir à morte do filho Zé.)
Nem me lembro já com que palavras, o meu Pai lá contou à tua Avó o sucedido. Pois ficou como calculas… ou viste daí… Uma vida inteira a criar-te. Era tua Mãe, além de Avó. Maria dos Santos, viúva do marido, “órfã” de 3 filhos, entre os quais a tua Mãe, Albertina, 1ª mulher do nosso Pai. Maria dos Santos, de Vila Nova do Ceira, Monteira, Góis. Maria dos Santos, analfabeta, ex-empregada no Instituto Pasteur, onde lavava frascos de vidro e onde foste criada dentro dos grandes caixotes de cartão que te serviam de parque, irmã. Maria dos Santos, a tua Avó, perdeu por fim a única neta nesse Natal de 1972. Ainda te sobreviveu seis anos e faleceu em 1978. Uma Avó Coragem… eu ia ali muito à casa da frente para onde vocês tinham mudado poucos meses antes de tu faleceres, tratar dos canários e fazer alguma companhia, claro. Fui a neta adoptiva, a única que restou.
Olha… ainda acabei o barco em miniatura que tu deixaste incompleto. Acho que era o “
H.M.S. Beagle”, onde Darwin foi na expedição às Galápagos. Os teus livros de Russo agarrei neles e também estudei um bocado. Pelo menos sei o alfabeto e sei ler mas hoje em dia só me lembro aí de umas 20 palavras… nesse tempo sabia muitas mais. A ti é que o Russo te ia fazer falta para quando entrasses no Gabinete da Área de Sines… para mim o Russo foi apenas um desafio e o gosto pelas línguas. Mais um hobby nas férias passadas no Alentejo…
Também tenho comigo muitos versos e desenhos teus, já tinha alguns, mas, finalmente com a entrega do teu pequeno apartamento que se fará ainda este mês, encontrei todos os teus papéis que ali ficaram durante 36 anos, em que a pequena casa foi servindo de biblioteca e armazém, depois do falecimento da Avó.
Dos montes dos teus livros, li os do “Santo” e os do Zane Grey todos. Claro que os da tua infância, os Cinco, a Semana de Aventuras, a Condessa de Ségur e o Emílio, esses já os tinha lido todos, ainda eles estavam na gaveta de baixo da cómoda, no quarto independente, onde eu regularmente me ia abastecer.
De coisas mais antigas que o Pai vai contando às vezes, lá sei que, logo depois de a tua Mãe Albertina ter falecido de tuberculose com cerca de 25 anos, o Pai e a Avó contigo ao colo vinham todos os dias de Mem Martins para Lisboa no combóio de Sintra. Depois, no eléctrico, mesmo depois de fazeres 6 anos continuaste a não pagar bilhete durante mais uns anos, pois todos os revisores conheciam a pequenita Calila, órfã de Mãe, que vinha sempre ao colo da Avó há tantos anos no mesmo eléctrico.
Também encontrei versos de tua Mãe Albertina e tua Tia Felismina, que amorosamente guardavas sem ter conhecido nem uma nem outra. Ambas com grande veia poética, tua Mãe e Tia foram colaboradoras na "Revista Trastagana" de Évora, até falecerem. Eu só soube disso agora que encontrei meia-dúzia dessas revistas, de 1936. A veia poética passou para ti, de tua Mãe e de nosso Pai. Agora, apesar de tão idoso, recuperou a saúde que parecia estar a abandoná-lo o ano passado, felizmente.
Um destes dias começarei a publicar algumas obras tuas, entre desenhos, poemas, prosas por aqui. Não se sonhava, no ano em que faleceste, que a Tecnologia de hoje em dia permitisse uma coisa dessas.
Irmã, terei de escrever mais sobre ti, para que alguns Amigos meus fiquem a conhecer algo da pessoa que já eras e cuja vida e talento, cortados cerce na nefasta senda de tua Mãe e Tios, ainda tanto tinham para dar.
Recebe um beijo de nosso Pai e desta tua irmã
Leonor
Minha Mãe, minha Irmã e eu - 1958UM SONETO DE MARGARIDA (dedicado a seus padrinhos)
Para a Madrinha e o Padrinho, o Fernando Manuel, a Dadi, o “tio” Hermínio. Se sinto tanto afecto, só de olhá-los,
É pena desigual deixar de vê-los;
Se presumo, com obras, merecê-los,
Má paga deste engano é chateá-los.
Se me vêm saudades, ao lembrá-los,
É por ter aprendido a conhecê-los;
Se mais me quero a mim, por bem querê-los,
Mais me aflige a ideia de deixá-los.
Expressões menores são, que o pensamento,
Estas tão pobres rimas, com que tento
Com fraco engenho, dizer forte sentir.
Ainda os não deixei, e, que ironia!
Falta-me já a vossa companhia;
Sobeja-me a tristeza de partir.
Margarida
7/10/71
(Infelizmente, este Soneto de minha Irmã, aos 24 anos, veio a revelar-se premonitório.)