sexta-feira, 10 de março de 2006

É assim que vivem os Homens


É tudo uma questão de cenário
muda-se de cama e muda-se de corpo.
Será que vale a pena pois, afinal,
sou eu sempre que a mim próprio me traio.
Eu, que me arrasto e me disperso,
e a minha sombra que se despe
entre os braços sempre iguais dos homens
onde acreditei encontrar um berço.

Coração ligeiro, coração volúvel, coração pesado,
pois é muito curto o tempo de sonhar.
Que será preciso fazer destes meus dias
Que será preciso fazer das minhas noites…
Eu não tinha amor nem morada,
lugar nenhum onde viver ou morrer,
era eu que passava como um rumor,
e adormecia no ruído da madrugada.

Era um tempo sem qualquer razão,
os mortos estavam sentados à mesa
e fazíamos castelos de areia,
imaginando que os lobos eram cães.
Todos mudavam de ideias e de ombro.
A peça seria estranha ou não,
mas se eu não ia bem no papel,
era por falta de compreensão.

E é assim que vivem os homens
e os seus beijos seguem-nos de longe.

Era no bairro de Hohenzollern
entre o Sarre e a caserna
e como as flores da luzerna,
desabrochavam os seios de Lola.
Ela tinha corpo de andorinha
deitava-se no sofá do bordel
e eu ia deitar-me ao lado dela
ouvindo o soluçar da pianola.

O céu acinzentava-se de nuvens
e passavam bandos de gansos selvagens
anunciando a morte à passagem,
por cima das casas do cais,
de onde eu, pela janela, os via.
E o seu canto triste o meu ser invadia
e julgava eu nele reconhecer
um velho poema de Rainer (*).

E é assim que vivem os homens
e os seus beijos seguem-nos de longe.

Ela era morena e de pele branca,
os seus cabelos caíam sobre a anca,
e quer fosse Domingo ou de semana
a todos ela abria os braços nus.
Ela tinha olhos de faiança
e trabalhava com confiança
para um artilheiro de Maience
que nunca mais regressaria a França.

Havia outros soldados na cidade
e à noite também subiam os civis.
- Retoca o rimmel das pestanas, Lola,
que em breve também irás partir.
Só mais um copo de licor
e foi em Abril, de madrugada,
pelas cinco horas, que em teu peito
um dragão enterrou a sua espada.

E é assim que vivem os homens
e os seus beijos seguem-nos de longe.

* * *

(*) Rainer Maria Rilke

Tradução livre da adaptação de Léo Ferré do poema de Louis Aragon “C´est ainsi que les hommes vivent”.

1 comentário:

Perola Granito disse...

Gostei deste jardim :o)